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Revista de Haicai - Editores: Chris Herrmann e Jiddu Saldanha
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quinta-feira, 8 de julho de 2010

Deitando a amarra

por Douglas Eden, Guin ga

Geralmente, ao findarmos algum trabalho, resta algum material que não foi aplicado. Alguns o doam, ou jogam fora, por falta de espaço ou de imaginação; outros o guardam para utilização futura.

O mesmo ocorre na criação do haicai, ou no desenvolvolver do kasen: alguns versos imperfeitos, ou desprovidos de kigô; outros não apropriados ao estágio em que se desenvolve o kasen, ou mal sintonizados à estação do ano determinada, têm como destino o cesto do lixo.

Haicai e Kasen são gêneros poéticos aparentados entre si Pode-se dizer que o haicai que conhecemos hoje seja um subproduto do Kasen. Kigô é um termo da Natureza que se refere à estação do ano em que estamos escrevendo o haicai. Pode ser uma flor, uma planta, uma atividade humana própria da estação do ano em que se está, ao escrever o haicai.

Goga dizia que o haicai pertence ao momento em que o sentimento é expresso ao aflorar de uma sensação. A expressão desse sentimento emoldura-se nos três versos da tradição do haicai no Ocidente, ou nos 17 sons da tradição japonesa. Mas Goga dizia mais: dizia que passado esse momento ao qual o haicai é pertinente, o tanzaku torna-se um papelzinho inútil (tanzaku é o papel em que se escreve o haikai). Mas tão inútil como aqueles que os samurais enviados às côrtes dos reis de Espanha e ao Vaticano jogavam no lixo, após limparem o nariz, na valeta central das acanhadas ruas medievais, para espanto e curiosidade dos citadinos europeus do pós-Renascimento.

Não discordando da essência desse ponto de vista de nosso Mestre, dado o pesado lastro cultural em que se apoia, mas sinto de modo diferente: vejo beleza também nas pontas, nas aparas, limalhas e outrs sobras de algum trabalho, físico, material ou intelectual.

Dizem os cristãos que Deus, ao terminar a construção do mundo, colocou no Maine - pequeno estado à Nordeste dos EUA, lindeiro ao Atlântico Norte - as sobras do material que Ele usou.

O litoral do Maine e dos estados ao sul, até o Cabo Cod, é um dos mais pitorescos do mundo. Da pequena Nantucket partiam, no séulo XIX, os navios de caça à baleia, em longínquos Cruzeiros que abrangiam as mais altas latitudes alcançadas pelo Atlântico e pelo Pacífico. Demandando o norte deste último, alcançaram o Japão, em busca de pontos de apoio para abastecimento e reparos. Foram as necessidades destes pequenos navios, na passagem da navegação à vela para a navegaçãoa vapor, que forçaram a abertura do Japão para as nações do Ocidente, concretizada pelo Comodoro Perry com seus "navios negros". Após ela, caiu o último xogum Tokugawa, e restaurou-se o poder do Imperador, que comprendeu a conveniência em adaptar aos novos tempos. Instituiu a educação pública e o serviço militar obrigatórios. Modernizou a indústria e os transportes, e dotou seu Exército e sua Marinha de navios e armamentos produzidos no próprio país. Uma pequena fração dessa História foi mostrada no filme "O último samurai".

Abaixo, vou largando a amarra, por seções:

Seção 1:

O velho gaucho

devagar, remenda o poncho...
Sopra o minuano.

Um zunido entre os galhos
das árvores desfolhadas...

O homem curvado
passa lento, tendo à brida
um cavalo baio ...

Seção 2:

(Festival das Flores, comemorado
Manhã do Hanamatsuri -- ... na primavera, na Liberdade)
o monge , alegre , sorri ...

Abrindo o desfile
um grupo de escoteiros
puxa o elefante branco...

As poucas nuvens de chuva
se dispersam pelo céu ...

Seção 3:

Noite paulistana - -
Na Vinte-e-Três de Maio
os fluxos vermelho e branco.

Bem debaixo do viaduto
um grupinho bebe pinga.

Na festa do Ivan
dança-se até as cinco horas...
Vizinhos reclamam.

Seção 4:

O tempo esfriou muito súbito:
quase tive um choque térmico!

Seus braços morenos,
seus longos cabelos negros
envolvem-me em sonhos...

No dia seguinte, a manchete:
Apanhou da Namorada!

Guin Ga

A amarra é uma extensão de corrente bem grossa e pesada, dividida em seções de cores diferentes, que faz a âncora fixar-se ao fundo do mar com segurança, evitando que o navio seja levado pelas ondas ou por alguma correnteza, à matroca.

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Um comentário:

  1. Gostei, Capitão. Um texto e poemas de múltiplas referências que se lê como quem está no tombadilho de um navio em alto mar: deliciosamente à matroca.

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