Cristiane Grando pergunta e o Haicaísta Celso Pestana responde
Cristiane Grando é autora de Fluxus, Caminantes, Titã e Gardens (poesia em português, francês, espanhol, catalão e inglês). Laureada UNESCO-Aschberg de Literatura 2002. Doutora em Literatura (USP, São Paulo), com pós-doutorado em Tradução (UNICAMP, Campinas), sobre as obras e manuscritos de Hilda Hilst. Professora convidada de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira na Universidad Autónoma de Santo Domingo (UASD) desde 2007. Diretora-fundadora do espaço cultural Jardim das Artes (Cerquilho-SP, Brasil, 2004) e do Centro Cultural Brasil-República Dominicana (São Domingos, 2009). http://www.letras.s5.com/archivogrando.htm
Mingau branco
Numa tigela imaculada –
A luz do sol do Ano-Novo.
(Josô)
No orvalho da manhã,
Sujo e fresco,
O melão enlameado.
(Bashô)
Na sopa fria,
Refletidos,
Os bambus do quintal.
(Raizan)
Primeiras neves –
Meu maior tesouro,
Este velho penico
(Issa)
Natureza morta.
Frutos, caça, vinhos?
Não. Maletas de couro.
Oldegar Franco Vieira (http://sopadepoesia.blogspot.com/2009/06/tres-haicais-de-oldegar-franco-vieira.html)
Não sei se é legal pintar um quadro tão pequeno e lhe colar uma etiqueta como a do primeiro verso desse poema.
CRISTIANE GRANDO: Quanto é permitido ao poeta fugir da concisão ao criar um haicai? Quais os casos de haicais mais extensos que você conhece?
CELSO PESTANA: A um bom poeta tudo é permitido. Se ele não quiser ser conciso ao criar um haicai, nada o impede. A questão é: por que o faria? Por que criar um haicai se não se pretende ser conciso?
Bashô falou da rã assim:
O velho tanque –
Uma rã mergulha,
Barulho de água.
Todas as cousas que há neste mundo
Têm uma história,
Excepto estas rãs que coaxam no fundo
Da minha memória.
Qualquer lugar neste mundo tem
Um onde estar,
Salvo este charco de onde me vem
Esse coaxar.
Ergue-se em mim uma lua falsa
Sobre juncais,
E o charco emerge, que o luar realça
Menos e mais.
Onde, em que vida, de que maneira
Fui o que lembro
Por este coaxar das rãs na esteira
Do que deslembro?
Nada.
Um silêncio entre juncos dorme.
Coaxam ao fim
De uma alma antiga que tenho enorme
As rãs sem mim.
Fernando Pessoa, 13-8-1933.
Navegar é preciso, mas escrever haicais é uma escolha – e não é uma escolha fácil.
CRISTIANE GRANDO: É possível relacionar, em alguns casos, um haicai com uma natureza morta? Gostaria que desse alguns exemplos de haicais que podem remeter a quadros (natureza morta, paisagem, etc).
CELSO PESTANA: Natureza-morta é um gênero de pintura em que se representam frutas, flores, livros, taças de vidro, garrafas, jarras de metal, porcelanas, dentre outros objetos. O foco de uma natureza-morta são esses objetos. Outros tipos de pintura podem ter objetos entre seus elementos, mas com um foco diferente.
O foco do haicai não são os objetos, e, portanto, não se pode falar em natureza morta nesse poemeto; mas, como os objetos fazem parte da nossa vida, aparecem aqui e ali na obra dos mestres. Por exemplo:
Mingau branco
Numa tigela imaculada –
A luz do sol do Ano-Novo.
(Josô)
No orvalho da manhã,
Sujo e fresco,
O melão enlameado.
(Bashô)
Na sopa fria,
Refletidos,
Os bambus do quintal.
(Raizan)
Primeiras neves –
Meu maior tesouro,
Este velho penico
(Issa)
Acho muito importante ter em mente que, quando se fala em foco no haicai, é preciso distinguir entre o objetivo, aquele que é descrito, e o subjetivo, aquele que é despertado pela descrição objetiva. Um bom haicai não prescinde deste último. Penicos, paisagens, marinhas, etc., em minha opinião, servem a esse propósito.
Mas há pelo menos uma tentativa entre nós de pintar uma natureza morta em três versos:
Natureza morta.
Frutos, caça, vinhos?
Não. Maletas de couro.
Oldegar Franco Vieira (http://sopadepoesia.blogspot.com/2009/06/tres-haicais-de-oldegar-franco-vieira.html)
Não sei se é legal pintar um quadro tão pequeno e lhe colar uma etiqueta como a do primeiro verso desse poema.
CRISTIANE GRANDO: Quanto é permitido ao poeta fugir da concisão ao criar um haicai? Quais os casos de haicais mais extensos que você conhece?
CELSO PESTANA: A um bom poeta tudo é permitido. Se ele não quiser ser conciso ao criar um haicai, nada o impede. A questão é: por que o faria? Por que criar um haicai se não se pretende ser conciso?
Bashô falou da rã assim:
O velho tanque –
Uma rã mergulha,
Barulho de água.
Pessoa, alma de amplos mares, preferia, talvez, às finas fatias de um sashimi uma dobrada à moda do Porto – e que não a servissem fria! E escreveu assim sobre o anfíbio:
Todas as cousas que há neste mundo
Têm uma história,
Excepto estas rãs que coaxam no fundo
Da minha memória.
Qualquer lugar neste mundo tem
Um onde estar,
Salvo este charco de onde me vem
Esse coaxar.
Ergue-se em mim uma lua falsa
Sobre juncais,
E o charco emerge, que o luar realça
Menos e mais.
Onde, em que vida, de que maneira
Fui o que lembro
Por este coaxar das rãs na esteira
Do que deslembro?
Nada.
Um silêncio entre juncos dorme.
Coaxam ao fim
De uma alma antiga que tenho enorme
As rãs sem mim.
Fernando Pessoa, 13-8-1933.
Navegar é preciso, mas escrever haicais é uma escolha – e não é uma escolha fácil.
Quanto à segunda parte da pergunta, não conheço nenhum bom haicai que seja mais extenso que o necessário.
CRISTIANE GRANDO: O haicai é formado por apenas uma estrofe ou há casos de haicais que são formados por duas estrofes?
CELSO PESTANA: Aquilo que no Brasil chamamos de haicai, e que é conhecido no resto do mundo por haiku, é formado por apenas uma estrofe. Há outra forma poética japonesa chamada tanka, constituída por um terceto e um dístico, e há alguns haicaistas brasileiros que a exercitam. No entanto, já vi um de meus mestres dizer que a maioria desses tankas não têm relação com a arte japonesa e são apenas uma maneira de burlar a restrição dos três versos para dar vazão à nossa verborragia ocidental.
Sobre a evolução (tanka, haikai-no-renga, haiku) e as características do haicai, recomendo a introdução do Prof. Paulo Franchetti no seu livro Haikai (com Elza Taeko Doi e Luiz Dantas), de onde, aliás, tirei as traduções acima.
Muito simpáticas as perguntas e incisivas as respostas, no sentido de uma independência em relação à tradição dos "kigos".
ResponderExcluirAprendi a gostar do estilo do Millor Fernandes, que os mais radicais não consideram inserido nesse gênero poético. O link
http://licburlesco.blogspot.com/2013/08/post-0102013-haicais-burlescos.html expõe um pouco da idéia de Haicais Burlescos,
que postamos em nosso blog. Gostaria de ter sua opinião/comentários..